21 Jun 2003

Do Brasil para o mundo

Primeiro a Cyclades apostou naquilo que ninguém acreditava: um tal de Linux.

E então se transformou numa multinacional da tecnologia

Por Roberta Paduan

Abandonar o emprego para fundar uma empresa na garagem não chega a ser novidade no mundo da tecnologia. Mas transformar esse sonho num empreendimento de classe mundial e ainda por cima com liderança tecnológica é uma história bem diferente. Que o digam os fundadores da Cyclades, uma das empresas de tecnologia mais bem-sucedidas do Brasil. Com uma aposta certeira, feita quando o assunto ainda era novidade, a empresa se tornou uma das mais bem posicionadas para crescer num setor hoje considerado o mais promissor pelos fabricantes e pelos compradores de tecnologia: o sistema aberto Linux.

A Cyclades já é uma multinacional de respeito. Tem escritórios em 12 países, como Itália, Alemanha e Japão, nos quais dividem-se 215 funcionários. Seus fundadores também se dividiram na conquista do mercado externo. Atualmente, o paulistano Daniel Dalarossa, de 41 anos, comanda a sede da empresa, transferida para a cidade de Fremont, em pleno Vale do Silício, na Califórnia. Lá funciona uma das duas fábricas da empresa, enquanto a outra permanece em São Paulo. O potiguar João Lima, de 46 anos, vive em Munique, na Alemanha, de onde toca a operação européia.

No ano passado, a empresa faturou 25 milhões de dólares. Detalhe: 75% dessas vendas foram feitas fora do Brasil, para clientes como os bancos JPMorgan Chase, Credit Suisse e Wells Fargo. O mais interessante é que os produtos fabricados pela empresa não atuam como coadjuvantes na operação tecnológica de seus clientes. O console access server (console de acesso remoto a servidores), a atual menina-dos-olhos da Cyclades, desempenha uma função crítica para companhias com grandes redes de computadores. O equipamento não só monitora o funcionamento dos servidores que compõem a rede como também permite que eles sejam consertados a distância. Com a ajuda dos equipamentos da Cyclades, o JPMorgan Chase mantém conectados em rede seus 8 500 servidores (um nos Estados Unidos, outro na Inglaterra e o terceiro em Hong Kong). Desde o ano passado, parte desses computadores é gerenciada por equipamentos da Cyclades, que se tornou fornecedora global do banco americano. O mesmo acontece com os milhares de servidores que mantêm no ar o portal Yahoo! em quase todo o mundo.

"Eles conseguiram superar o fator N.I.H., que significa not invented here (não inventado aqui)", diz o gaúcho Sergio Pretto, vice-presidente de operação global do Terra Networks, empresa de internet do grupo Telefônica. Detalhe: o "aqui" em questão é o Vale do Silício, onde Pretto também trabalhou em parceria com a Cyclades na década de 90.

Uma das razões que levaram a Cyclades a superar o tal "fator N.I.H." foi a coragem dos sócios de jogar tudo fora e começar do zero, caso o mercado sinalize com uma boa oportunidade. Quando Lima e Dalarossa decidiram abrir a empresa, em 1989, a idéia inicial era desenvolver um equipamento capaz de fazer dois computadores conversar chamado placa conversora de protocolos. Vale lembrar que estamos falando de uma época em que as redes locais de computadores começavam a surgir no Brasil. Até então, padrões de comunicação para máquinas e softwares eram raridade. Após meses trabalhando de madrugada e em fins de semana, os sócios receberam uma proposta do dono da fabricante de PCs em que Lima trabalhava. Sabendo da empreitada do funcionário, o empresário propôs: se a Cyclades fabricasse outro tipo de placa, ele passaria a comprar da empresa. A possibilidade do primeiro contrato fez Lima e Dalarossa mudarem completamente o projeto.

Foi nesse período também que ambos chegaram à conclusão de que um deles teria de se dedicar integralmente ao novo negócio. Dalarossa pediu demissão, e Lima dividiu o salário com o sócio por nove meses. "Era meio a meio mesmo", diz Dalarossa, na época já casado e pai do primeiro de seus cinco filhos. Familiares e amigos acharam que os dois estavam cometendo uma loucura. Como dois engenheiros, formados por duas das universidades mais conceituadas do país -- Lima fez Unicamp e Dalarossa formou-se na USP --, tinham coragem de assumir tamanho risco? Dividir o próprio salário? Arriscar uma carreira promissora para trabalhar numa garagem com apenas um computador, duas cadeiras e uma bancada construída com um pedaço de madeira comprada na Estação da Luz, na zona central de São Paulo?

O mesmo empreendedorismo que os fez dividir um salário por quase um ano levou os dois a tentar a vida nos Estados Unidos em 1991, dois anos depois da abertura da empresa. Dessa vez, Lima -- escolhido como desbravador -- passaria maus bocados por lá. Aqui no Brasil, a Cyclades dava lucro. Era uma das poucas fabricantes de um componente bastante utilizado, na época, para conectar um computador a vários terminais, chamado placa multisserial. Mas nos Estados Unidos existiam centenas de empresas que faziam a mesma coisa. Foram mais de dois anos batendo cabeça. "No fim do dia, eu ia para casa dirigindo e me perguntando como faria para abrir nosso espaço", diz Lima.

Em 1994, a empresa iniciaria sua grande virada. Olhos e ouvidos ligados no mercado novamente apontaram a direção. "Naquela época, quando eu tentava convencer as empresas de hardware a desenvolver uma placa que funcionasse com Linux, ninguém levava o assunto a sério", escreveu o editor americano Phil Hughes, na edição de julho de 2001 do Linux Journal, editado nos Estados Unidos. "A Cyclades, pelo menos, conversava comigo."

Mais uma vez a empresa foi pioneira -- e mundial -- ao desenvolver uma placa multisserial para rodar em Linux, um sistema operacional sem dono, que pode ser utilizado gratuitamente. O lançamento fez com que ela entrasse para a história como a primeira empresa no mundo a desenvolver uma linha de hardware baseada em Linux. O registro consta na linha do tempo do Linux Journal, uma das publicações mais respeitadas entre os adeptos do sistema. Desde então, por oito anos consecutivos, a empresa foi eleita pelos leitores da revista americana a melhor fabricante de placas para o sistema operacional. "Não aprendemos o significado de globalização no banco da escola, mas na prática, quando começamos a receber telefonemas da Itália, da Inglaterra e de tudo quanto é país", afirma Dalarossa.

A ficha só cairia nas grandes corporações anos mais tarde. Em 2001, a IBM anunciou que investiria 1 bilhão de dólares para adequar seus produtos ao Linux. No ano passado, o sistema operacional simbolizado por um pingüim já era responsável por rodar 13,7% dos servidores nos Estados Unidos. A Dell Computers, por exemplo, conseguiu diminuir o preço de seus servidores, enquanto a Intel formatou seus processadores de alta performance para trabalhar no novo padrão. A explicação para tal sucesso, além do fato de o Linux ser gratuito, é que, por ser aberto e estar sujeito a freqüentes reparos, ele acaba dando mais estabilidade aos computadores. Em outras palavras: dá menos "pau" nas máquinas. Por isso, começou a ser tão adotado.

A partir daí, a Cyclades ampliou a linha de produtos e passou a fabricar também equipamentos mais sofisticados. De 1994 para cá, o faturamento foi de 3,4 milhões para 25 milhões de dólares. No ano passado, a empresa conseguiu um empréstimo de 4,5 milhões de reais do BNDES. De acordo com Carlos Eduardo Castello Branco, gerente de contas da instituição financeira, a empresa conseguiu 1 milhão de reais a mais do que pediu originalmente por ser considerada inovadora, ter um programa de internacionalização consistente e uma carteira de clientes muito boa.

O futuro, no entanto, está calcado na nova linha de produtos iniciada com o carro-chefe da empresa, o tal console de acesso remoto a servidores, usado pelo Departamento de Trânsito da Austrália. "Queremos ser líderes mundiais em sistemas de gerenciamento de redes a distância", diz Rodolfo Gobbi, diretor-geral da empresa no Brasil. "A concorrência é que está seguindo nossos passos." Curiosamente, foi uma conversa com os técnicos americanos do Yahoo!, em 2000, que motivou o desenvolvimento do produto. Dalarossa percebeu que o Yahoo! vinha comprando uma quantidade exagerada de um determinado equipamento. Em seguida, descobriu que a máquina era adaptada para realizar outra função. Oito meses depois, a Cyclades havia reformulado o produto, com vários avanços em relação ao improviso. "Nossa maior competência até agora foi justamente não ter a vaidade de jogar fora o que não serve mais", afirma Lima. "Empresas turronas, que não ouvem o mercado, morrem."

CLIENTE GRINGO

Dos 25 milhões de dólares faturados pela Cyclades em 2002, 40% foram originados por vendas nos Estados Unidos, 25% no Brasil, 30% na Europa e 5% em países asiáticos


Palavras-chave: acesso remoto


Resultados: emprego no mundo

-- GregorioIvanoff - 07 Jul 2003

Revision: r1.4 - 07 Sep 2023 - 13:26 - GregorioIvanoff
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